27.12.07

Encontros e Expectativas

Segundo o filósofo amsterdão Spinoza, quando eu faço um encontro de modo que a relação do corpo que me modifica, que age sobre mim, combina-se com minha própria relação, com a relação característica do meu próprio corpo, minha potência de agir é aumentada, ao menos sob aquela relação. Isso é um bom encontro. Quando, ao contrário, eu faço um encontro de modo que a relação característica do corpo que me modifica compromete ou destrói uma de minhas relações, ou minha relação característica, minha potência de agir é diminuída, ou mesmo destruída. Isso é um mau encontro. Assim, Spinoza define os dois afetos humanos - affectus - fundamentais: a tristeza e a alegria.
Durante nossos anos de vida, fazemos bons e maus encontros, inevitavelmente. Há quem diga que podemos transformar maus encontros em bons, e vice-versa. Esse ano, fiz ótimos encontros e, muitos deles, aconteceram nas minhas salas de aula. Alguns alunos conseguiram ultrapassar a barreira da sala de aula e serem mais do que alunos, simplesmente. No entanto, infelizmente, alguns encontros maus também aconteceram, dos quais alguns tentei transformar num bom encontro, enquanto outros, devido as circunstâncias, tentei piorar ainda mais (Luize Russo bem sabe do que estou falando). Procuro, contudo, tirar boas lições de todos eles na intenção de fazer cada vez melhores encontros na vida.
Uma das lições mais importantes que aprendi foi a de que talvez os maiores culpados pelos maus encontros são as expectativas. Não estou negligenciando o fato de que algumas pessoas estão predispostas a estragarem encontros. Falo das pessimistas e das mal-amadas. Não é sobre elas que estou a dedilhar esse teclado, mas sobre nós mesmos. Quando criamos expectativas, estamos abrindo caminho para surpresas, que podem se converter em tristezas ou alegrias. O problema é que, a rigor, porque criamos expectativas gigantescas, as surpresas se transformam em tristezas, que caracterizam os maus encontros. Esse final de ano criei expectativas para um reencontro com uma amiga e acabou que o que deveria ótimo se tornou um encontro muito frustrante. Aliás, a frustração é, na minha opinião, o fim mais natural da expectativa alimentada por nós. Ou seja, quando existem expectativas, há maior probabilidade de fazermos um mau encontro.
Na iminência de um novo ano, começam a serem feitas as eternas resoluções de ano novo e, com elas, geralmente aparecem as expectativas. Mas a minha melhor delas, e não só para 2008, mas para o resto da vida, é a de não mais criar expectativas para nada. Chega de maus encontros! Basta! Logo, perguntas do tipo

"O que você espera do Ano Novo?"

que faziam parte até do meu trabalho, mas que não se restringem a ele, não deverei mais usar. Então, em vez de perguntar o que meus alunos esperam de determinado curso, vou procurar saber o que eles poderão oferecer para tornar os encontros mais produtivos a cada dia para todos.

Aproveitando o ensejo, uma vez que esta deverá ser a última postagem de 2007, desejo a todos que acompanham o blog um Ano Novo repleto de bons encontros e escasso de maus encontros. Sejam felizes!

21.11.07

Nossas Colchas de Retalhos

Uma perda irreparável nesta segunda-feira me fez chegar a uma nova definição sobre o que é a vida:

"Nossa vida nada mais é do que uma colcha de retalhos,
costurada a várias mãos, que nunca chega ao fim,
e que aquece muitos corações, mesmo depois
que o seu alfaiate, ou costureira, se foi."

Nessa colcha, há retalhos de todos os tipos, tamanhos, cores e qualidades... Na verdade, nunca sabemos quem será o próximo a pegar a linha e a agulha e recomeçar a cosê-la. Alguns desses retalhos são resistentes e bonitos, outros são vagabundos e sem graça, mas todos estão lá, contando parte da história daquela peça.
A costureira que foi chamada para assumir sua máquina de costura no Céu essa semana, aplicou um pedação de retalho na minha colcha, onde vê-se, principalmente, amor. Minha homenageada tinha tanto amor que dava para todos os seus filhos, netos, bisnetos, e ainda sobrava para quem quisesse. Para ela, comecei como o menino que ficava no muro, que chorava quando a mãe ia trabalhar, e terminei como o "doutor", sendo que essa última memória já não tinha mais porque o Alzheimer já não lhe permitia lembrar, assim como a minha vozinha de sangue, que há quase três anos "pegou um barco na beira do rio e, finalmente, encontrou o caminho da casa (do Pai)".
É muito estranho olhar para a nossa colcha e realizar que os responsáveis por alguns dos retalhos já não estão mais aqui, por mais que os sintamos ainda tão presentes. Às vezes, temos a impressão de vê-los ou até mesmo escutá-los. Quanto a isso, sei que a família dela, assim como eu, casualmente iremos nos pegar escutando a canção que nossa querida D. Durvalina murmurava sentada na sua cadeira cativa, mascando seu tabaquinho: Cinderela, de Adelino Moreira.


"Venha de onde vier, chegue de onde chegar
Aquele amor que sonhei virá que eu sei é só esperar
Venha de onde vier, chegue de onde chegar
Encontrará Cinderela de beijo mais puro de amor pra lhe dar
Cinderela, Cinderela, menina moça, coração a palpitar
Cinderela, eu sou Cinderela, e o meu príncipe encantado vai chegar"


Isso tudo me fez pensar sobre como tenho costurado meus retalhos por aí. Será que estou dando pontos fortes que vão levar anos para serem desfeitos ou só pontos frouxos? São os retalhos que tenho distribuído de boa qualidade ou do tipo que se esgarçarão na primeira oportunidade, dando um aspecto deselegante à colcha alheia? Em todo caso, o melhor a se fazer é adquirir um bom dedal, porque alguns desses falsos estilistas de plantão, independentemente do tipo de retalho que possuam, ao aplicá-lo, acabam nos ferindo se não estivermos bem protegidos. Bem, não sei... Só sei que, quando nos encontrarmos novamente com a pessoa batalhadora e tão querida que inspirou essa homenagem, talvez não haja um glamuroso tapete vermelho nos esperando, mas um alegre tapete de retalhos, super colorido, e um abraço bem apertado de boas-vindas no final dele, com toda certeza teremos.

Descanse em Paz, Cinderela!

5.10.07

Amigos do Silêncio

Amigos não só devem falar o que deve ser dito, como também devem saber escutar. Muitas vezes ficar calado só escutando é mais difícil do que dizer o que está na ponta da língua. Estando certos ou errados, a verdade é que devemos saber a hora de falar e de calar. Na verdade, todos sabemos que, em algumas situações,

"O silêncio é a melhor opção!"

O silêncio pode ser a melhor companhia, também. Tantas vezes precisamos ficar a sós, para encontrarmos o silêncio. Tantas outras ficamos em silêncio para encontrarmos a nós mesmos. Às vezes, nós somos a nossa melhor companhia. No entanto, algumas pessoas não conseguem ficar completamente a sós, precisando de uma companhia apenas. Não uma outra pessoa, não uma companhia qualquer, mas um amigo. Um amigo que não diga nada, que talvez nem as ouça, mas que faça companhia. Um amigo do silêncio.
Cada um escolhe o amigo do silêncio que quiser. Pode ser um cão, um gato, um pássaro -- que obviamente não ficam em silêncio o tempo todo, mas que entendem de alguma forma que há momentos que devem calar e só acompanhar --, ou até mesmo um amigo de pelúcia. Há vários tipos de amigos do silêncio animados ou inanimados, reais ou fictícios, não importando a origem, mas a sua importância na nossa vida.
O meu amigo do silêncio veio em forma de presente, mas ainda assim pude escolhê-lo. Pude decidir entre um peixe azul muito bonito e outro diferente, pois tinha um tom marrom alaranjado, com uma linha preta no contorno externo da cauda. E foi exatamente por causa desse detalhe na cauda que ganhei Betto, meu peixe beta.


Sempre me perguntei como deveria ser a vida de um peixe. O que ele sente, se sente algo? O que ele ouve, se ouve algo? Betto me respondeu algumas perguntas. Peixes sentem algo além de fome, sentem a presença de alguém, são curiosos, gostam de chamar atenção e sentem preguiça. Sim, preguiça. Logo que chegou no meu quarto, Betto dormia em cima da folhinha mais alta da planta que decorava sua casa e lá ficava repousando, sem se mover. Depois de um tempo, a confiança foi aumentando e ele já até comia na minha mão. Na verdade, na ponta do meu dedo, mas, enfim... Até carinho ele deixava que eu fizesse no seu dorso (Minha amiga Tereza Jardim não acreditou nisso). Mais tarde, achei que ele havia se tornado mais uma vítima da moda, pois ele deixou de comer. O primeiro peixe anoréxico da face da Terra. Ou será que ele estava me avisando para começar uma dieta? De fato, pensei que ele havia ficado com preguiça de comer, mas, na verdade, ele adoecera. O detalhe na cauda, a linha preta, o mesmo que me fez preferi-lo ao mais bonito, já era um sinal de doença. Assim, ele ficou me fazendo companhia por, mais ou menos, um mês, sem comer, nadando como um louco para me alegrar, me fazendo companhia, em silêncio.
Hoje faz sete dias que perdi meu companheiro de quarto. Hoje, há mais silêncio do que antes. Ele era meu amigo do silêncio e sinto muito, mas muito mesmo, a falta dele. Oro pelo dia que voltarei a encontrá-lo no lago que há no céu (como meu amigo Ney disse que há), ou nadando alegremente, ou dormindo em cima de uma folha.
Fica com Deus, Betto!

1.8.07

Amizade Descolorida

Assistindo a uma discusssão sobre amizade, surgiu a velha dúvida que martela cabeças por gerações:

"Amizade colorida estraga a verdadeira amizade?"

Não, não perca seu precioso tempo tentando dar mais pano pra essa manga. Pare, respire profundamente, olhe ao redor e veja quantas cores estão aí. Agora, reflita e veja se concorda com a expressão acima. Se a amizade colorida é aquela que pode levar uma amizade para um próximo nível, ou arruiná-la de vez, a verdadeira amizade é desprovida de cor? Não era pra ser o contrário? Não consigo lembrar agora uma outra situação na qual colorir algo pode ser maléfico. Mas o que mais me intriga é a idéia de uma amizade em preto e branco, sem graça, descolorida, por assim dizer. Mesmo na época dos filmes monocromáticos do Chaplin isso não devia ser uma coisa legal, senão não teriam criado o cinema em cores.
Logicamente que há amizades e amizades, mas daí a imprimir as fotos das minhas amizades em tons de cinza na minha memória é meio estranho, você não acha? Como seriam essas lembranças? Como poderia lembrar do efeito do sol na pele morena da amiga ou do amigo naquele pôr-do-sol inesquecível daquelas férias únicas do ano que antecedeu a partida dele ou dela para mais perto do Criador? Graças a Deus temos íris, os nossos cartuchos coloridos.
De repente, as amizades, assim como as cores, podem ser classificadas em quentes ou frias, primárias, secundárias ou terciárias, ou até em complementares... Nisso tudo, sabe onde fica o cinza? O cinza é uma cor neutra. O que seria uma amizade neutra? Eu digo que seria aquela que não quero pra mim. Gosto de pessoas que fazem a diferença, que mostram para que elas vieram ao mundo, que contribuem para o desenvolvimento recíproco. Não é à toa que já mandei uma pessoa que considerava amiga pra onde ela nunca esperava ir sem pensar duas vezes nem sentir uma gota de arrependimento até hoje. Quem manda querer derramar tinta preta na amizade? É como dizem: "Não sabe brincar, não desce pro play!"
Sendo assim, quero mais, muito mais amizades coloridas, não importa a matiz. De preferência daquelas cantadas por Toquinho, em "Aquarela", porque a tinta da verdadeira amizade é a única que nunca seca. Mancha às vezes, é verdade, mas não compromete a obra. Até porque são essas manchas que as tornam únicas na nossa vasta galeria da vida.

6.6.07

Conto da Tartaruga


"Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é"

Cada um de nós tem uma essência que nos faz diferentes e únicos. Essa fórmula química que provém da união das essências materna e paterna ainda é um mistério para a ciência e, consequentemente, para a humanidade. Não é à toa que milhares de psicólogos nascem no mercado todos os anos no mundo inteiro. Pois bem, vamos partir desse ponto. Você sabe quem você realmente é ou só tem uma vaga noção? A resposta para essa questão nos é dada sempre que somos postos à prova, numa situação completamente inusitada. Você saberia dizer como reagiria em situações que você nunca enfrentou na vida? Os médicos já conhecem, e você já ouviu falar da adrenalina, o hormônio que nos faz fugir ou lutar em situações de extremo estresse. O que eles ainda não disseram, nem têm como, é do que somos capazes de fazer quando esse hormônio toma as rédeas dos nossos atos. Bem, o que quero dizer com isso é que nem nós mesmos nos conhecemos. Não temos ao certo a composição completa da fórmula que nos torna esses seres humanos, às vezes desumanos, que somos. Mas não pare de ler aqui, pois isso não é tudo nem é exatamente onde queria chegar.
Mais sério do que não saber quem somos genuinamente é não nos conhecermos e ainda querermos mudar os outros. Não... não estou falando que você e eu somos assim o tempo todo, mas uma hora isso inevitavelmente acontece, mesmo que seja apenas em pensamento. Então, pare de pensar na vida alheia e pense comigo: Por que será que algumas pessoas tentam mudar as outras quando elas próprias precisam ser melhoradas? Por que algumas criaturas tentam mudar outras quando elas próprias não demonstram disponibilidade para mudanças? Será que estamos atrapalhando seu processo de auto-conhecimento ou algo parecido?
Isso tudo me faz lembrar de uma máxima que minha amiga Karina Gaya adotou, que inclusive consta no seu scrapbook, que é: "Por que a tartaruga vive cem anos? Sabe por que? Porque ela cuida da vida dela, então cuida... cuida da tua vida!" Como se fosse tão fácil quanto falar, não é? Então me pergunto se a vida dessas pessoas tem algo de especial ou se é tão sem sentido que as fazem procurar na vida alheia algo para se importarem, se preocuparem e se ocuparem.
Enfim, o meu conselho é o seguinte: Quando algum desses seres inconvenientes atravessar o seu caminho, pergunte se ele conhece o Batman, o Vingador ou até mesmo a Uni. Se não os conhecerem, peça que fale com eles primeiramente, e depois, se lembrar, conte o segredo da tartaruga.

Perdas Significativas

Ontem tive uma perda muito significativa, não comparável a que tive há quase dois anos. Mas essa perda foi importante pois me mostrou, de certa forma, que estava certo quando tomei a decisão de desistir do curso médico. Estava a tomar conta de uma plantinha que parecia um cactus, mas ela se foi. Se foi porque eu não soube cuidar dela. Não percebi ou não soube interpretar os sinais que ela me enviara. Foi, então, que me questionei como seria se ela fosse um ser humano. Sabendo que, se seguisse a carreira médica, seria geriatra, me pergunto: E se fosse um velhinho? Há quem diga que as pessoas mudam quando começam a tratar das mazelas alheias, que ficam mais frias, que deixam de ser emocionais e permitem que a razão se sobressaia em momentos assim. E foi exatamente isso que me fez largar aquele curso.
Diferentemente de minha avó, não vou ter a imagem da plantinha por muito tempo na minha memória, pois não esperava que ela se fosse tão rapidamente. Por que cargas d'água Christina Aguilera começa a cantar
"Hurt" exatamente agora no rádio? Talvez porque seja hora de falar da minha avó, ou melhor, vovó Didi, como a conhecíamos.
Vovó Didi era forte, muito forte... e teimosa. Teimosia essa que deve ter passado geneticamente para todos nós. Teve muitos filhos, criou a maioria, perdeu um ainda jovem, ganhou uma penca bem grande de netos, os quais levou na memória até o fim. Nos levou com ela, mas não como somos agora, mas como éramos quando crianças, porque o Alzheimer já não a permitia nos reconhecer, o que era, ao mesmo tempo, triste e engraçado. Triste porque queríamos chegar mais perto dela para um carinho que fosse e éramos severamente mandados "pra baixa da égua", pois não passávamos de estranhos na cabecinha dela. Mas acabava sendo engraçado quando ela dizia toda a lista de chamada dos netos para poder acertar o nosso nome, finalmente.
Uma curiosidade sobre os últimos anos dela é que, não importava onde estivesse, ela pedia para ir para a casa dela, que ficava atravessando o rio [Xingu], e que sempre havia um barqueiro à espera dela no cais para levá-la embora. E nessa casa, suas criancinhas a esperavam, era o que sempre repetia. Por isso, no dia 11 de dezembro de 2005, depois de ser acordado com a notícia de sua partida, mandei a seguinte mensagem para minha mãe, que estava lá, no leito de morte de sua mãe:
"Agora sei que o canoeiro que a levaria para casa era Deus e as criancinhas que a receberiam, anjos do céu. Ela chegou à casa que tanto falava."
Hoje, tenho bem nítida a imagem dela em mim, pois, como sabia que ela nos deixaria
mais cedo ou mais tarde, procurava ficar parado a olhar para ela, a registrar o máximo de seu semblante na minha mente, o que às vezes a incomodava, obviamente. Mas não terei o mesmo da minha plantinha, que era tão bonita, mas que morreu chorando...
Meses depois do seu falecimento, minha mãe me disse que, pouco antes de morrer, já sem poder levantar-se,
vovó chamou mamãe para deitar-se junto a ela, segurou sua mão e assim partiu.
E eu não tive a chance de despedir-me delas... Então, simbolicamente, faço isso agora:

"A benção, vozinha... Desculpe, plantinha... Vão com Deus!"